sábado, 7 de março de 2020

Aquí y Ahora

No mês de janeiro embarquei para meu intercâmbio político em Santigo de Chile...
Ainda presa em devaneios, sigo tentando construir meu diário de bordo destes momentos singulares e inesquecíveis...

18/01/2020

"Embarquei para Santigo logo pelo horário do almoço, mal sabendo tudo de maravilhoso que me aguardava pela frente. Horas depois, degustando um bom vinho chileno e um brownie, me deparei com a Cordilheira dos Andes, vista por cima. Meu Deus, que emoção! Umas das imagens mais lindas que tive a sorte de contemplar em vida.
Desembarcar em Santiago é meio louco, aeroporto imenso, eu sem domínio algum do espanhol, me virei e percebi que a única solução era gastar meu inglês para conseguir encontrar os companheiros que me aguardavam no centro. Lá vou eu na fila do ônibus, fiz a plena, cara de quem sabia o que estava fazendo e me enfiei no primeiro sentido metrô; conheci no trajeto uma estudante da Unicamp, mal sabia eu que seria uma das poucas brasileiras que eu encontraria dali em diante. Muito me intrigou que no meio da conversa ela me perguntou o que era democracia... Fiquei chocada e com todo carinho do mundo expliquei tudo que podia acerca do que democracia, feminismo, direitos humanos e liberdade significavam pra mim.
Descemos na estação 'Los Heroes', que logo depois que seria a estação que me salvaria a vida muitas vezes ao longo dessa aventura andina. Ao chegar encontrei Guilhermo, grande companheiro que me recebeu e acompanhou tão bem durante toda minha jornada. Quanto a garota? Ensinamos como ela faria para chegar ao hostel dela e meu amigo presenteou a menina com um cartão de metrô, acho que assim ela compreendeu um pouco como é a vida ´para nós socialistas..."

                                                             ***

"Segui com Guilhermo por Santiago até o apartamento de um camarada e sua família, composta pelo casal e a linda Sofía, que acolheram minha mala e na sequência fui ver de perto os protestos, que naquele dia completavam três meses de revolta social contra um governo que detêm apenas 6% de aprovação popular, ou seja, apenas os mais ricos o mantêm no poder, desconsiderando e oprimindo a maioria da população que clama por sua renúncia e resgate da dignidade.
No caminho enxerguei uma Santiago elitizada, central, mas em grande parte pichada e me deparei pela primeira vez com palavras de ordem escritas em muros em língua espanhola, me apaixonei, obviamente.
Aos poucos enxerguei também a situação dos estrangeiros de países como Venezuela, Peru e Colômbia, logo quando nossa caminhada avançou do bairro mais rico para a região dos embates. É absurda a capacidade de sobrevivência desse povo. É o sangue latino, que assim como nós brasileiros, se viram vendendo comida na rua, muamba e, infelizmente, até o corpo, conforme descobri posteriormente. Sexo sendo moeda de troca, desde os primórdios, infortunamente, nós humanos possuímos essa característica grotesca pré-estabelecida, ouso dizer que implícita em nosso DNA."

***

"Que felicidade sentar em uma praça histórica de frente à tantos prédios históricos e imersos em tanta cultura, fiquei embasbacada, por pouco tempo, logo ouço gritos: 'pacos assassinos' e vejo pessoas atirando tijolos nos carros da polícia, denominada 'carabineiros' no país. Naquele momento a vontade foi chegar mais perto e assim fui caminhando até o confronto, de maneira instintiva, sem pensar, apenas fui.
Gritos, fogo, barulho de pedra batendo em metal, gás lacrimogêneo, jatos de água, um garoto anarquista que nunca mais verei pediu ajuda com a blusa, pois tinha acabado de levar um tiro bala de borracha, bala essa que mais tarde descobri, tem o intuito de atingir os olhos dos manifestantes.
Lá estava eu, segura atrás da banca de jornal fechada, sem saber em quanto tempo aquele local também seria atingido, fui agindo por impulso e com o apoio do Guilhermo, que foi meu contando em seu 'portunhol' toda história do local e nos guiando, pois eu apenas andava por sobrevivência e curiosidade, mais essa que aquela, obviamente, pois eu sabia que havia a opção recuar, só que não, sou teimosa. Aguardei três longos meses para chegar na 'Plaza de La Dignidad' e era lá que eu queria estar.
Entramos em ruas com os dizeres de 'Queremos Respirar em Paz', com faixas, inclusive, de um prédio à outro. De repente, pá: cafés, cultura, turistas, população, todos vivendo como se  na quadra de trás não estivesse havendo nada, absolutamente calmos.
Cigana que sou, parei para contemplar as artes à venda, a grande maioria relacionada às bandeiras do povo e à luta latinoamericana, claro que o barulho das pedras no furgões e do choque avançando era notável e continuou me impulsionando a deixar de lado o passeio consumista e enfim andar apenas mais uma praça para chegar ao monumento que eu tanto queria estar.
Brasileira, de esquerda, clichêzona com o celular na mão filmando tudo e adentrando à zona de confronto. Após muito tentar, consegui reconhecer o cavalo da antes ' Plaza Itália' e aquilo me estimulou a continuar seguindo, era meu sonho de meses se realizando, mas é claro que não seria tão fácil assim, após respirar o bendito gás ao ponto de me acostumar com ele, fui surpreendida por jatos de água vindo dos camburões que pareciam tanques, muitos me disseram que há soda na composição do jato jorrado nas pessoas.
Recuei, andei, recuei novamente, cheguei pertinho, mas meu corpo enfim pediu descanso e virando a esquina me deparei com a 'Cruz Roja', estação voluntária de atendimento aos feridos.
Foi ali que me dei conta do que eu estava vivendo. Quando uma moça me ofereceu um 'geladinho', eu peguei e tomei aquele líquido como se fosse a substância mais saborosa do planeta e que aos poucos foi me livrando dos efeitos do gás e me dando coragem pra decidir se eu voltaria ou não.
Coragem eu tive, mas deve ser a idade, tive receio, temi pela vida e resolvi retornar para a praça maravilhosa de frente a PUC, eu acredita que naquele momento era o mais seguro a se fazer.
Claro que não era! Paramos para nos estabilizar na praça e do nada os 'pacos' também chegaram àquele lugar e a tal água que machuca a pele foi jorrada em mim novamente. Relógio: 21h, é Santiago... Parece que deu por hoje!"

***

"Ao retornar ao bairro em que minhas malas descansavam plenas, pude observar hortas comunitárias nas calçadas, pessoas felizes caminhando, outro país em cerca de cinco quadras...
Foi aí que conheci, por meio de Sofía, a vista do vigésimo andar de um dos edifícios mais tradicionais de Santiago e lembro que enquanto eu tentava me comunicar com aquela garotinha de dez anos, que não falava a minha língua materna e menos ainda meu segundo idioma, contemplei a beleza daquele lugar tão complexo e me deparei com a frase que mais me marcou em toda a viagem pichada em um outdoor: 'Não era Paz, Era Silêncio!' e foi aí que pensei: até quando? Até quando meu país continuará em silêncio.
Após muito carinho daquela família querida, encontrei por meio de um aplicativo de celular o local que seria minha morada nos próximos dias, morada essa que merece um texto só pra ela..."


***



Ao som de Sentimental finalizo esse relato, ainda que tardio, sobre meu primeiro dia nessa aventura, dia este surreal e perfeito! 

Logo vem mais texto por aí...




 

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